domingo, dezembro 23, 2012

Interessantes considerações...

Lendo esta postagem aqui, do Blog do Yuri, e assistindo aos dois vídeos-áudios ali disponíveis, de um diálogo travado em 2006 entre o responsável por aquele espaço, Yuri Vieira, e o filósofo Olavo de Carvalho, não resisti a transcrever alguns trechos para deixar registrado. Então, para conhecimento dos leitores deste blog, segue...

Do primeiro vídeo-áudio (que no YouTube está disponível neste link):

O tal "ecumenismo" é possível? (2:19 - 4:04)

Yuri: -- É o Schuon [Frithjof Schuon] que fala sobre a unidade intrínseca de todas as tradições religosas? É ele?

Olavo: -- Não... Ele  tem um livro, que é um clássico desse estudo de religião comparada, que se chama Da Unidade Transcendente da Religião, e um dos princípios que ele coloca é que só pode existir unidade no sentido de transcendente, não imanente. (...) Então você tem uma unidade do conteúdo metafísico das doutrinas das várias religiões, o que não quer dizer que você tenha uma unidade do ponto de vista ritual, moral, legal, canônico, etc., etc. Essa unidade das religiões no sentido material, no sentido exotérico, pra ele é uma impossibilidade pura e simples. E ele tem toda razão. (...)

Yuri: -- É... E isso, evidentemente, como você disse, se é transcendental, não tem nada a ver com ecumenismo, né?

Olavo: -- Não, não tem nada a ver. (...) Esse negócio de ecumênico, isso aí é um negócio politicamente correto, isso aí é coisa da ONU. (Risos.) Você faz lá um templo em que vale tudo, em que o sujeito vai celebrar missa católica ao mesmo tempo que [pratica] rituais budistas, etc., etc. Daí você entra no reino da confusão. E da politicagem... Na verdade, isso é o mundo do Anti-Cristo, é o mundo da falsificação total.

Racionalismo, moral cristã e os "templos da estupidez humana" (27:08-28:48)

Olavo: -- O que hoje nós conhecemos, por exemplo, como moral católica só obteve uma formulação escrita no séc. XVIII. (...) Então só no séc. XVIII que isso obtém uma formulação organizada e uniforme, na grande obra de Sto. Afonso de Liguori Teologia Moral, que é uma obra de racionalismo, porque Sto. Afonso de Liguori faz, na moral cristã, o tipo de raciocínio dedutivo que vai, vamos dizer, do geral para o particular, exatamente como Spinoza tinha feito na Ética. Então você vê que o modus raciocinandi racionalista deu à moral cristã a sua formulação racional. Pra você ver como essas coisas são, vamos dizer, complicadas... Não são insolúveis, mas têm que ser abordadas com muita seriedade, muita responsabilidade, e, pra isso, a primeira condição é você abandonar esses conceitos, vamos dizer, vulgares, de tomada de posição vulgar, que são alimentados diariamente na mídia e nessas m... de instituições chamadas "universidade", que deveriam ser fechadas todas, porque isso aí é o templo da estupidez humana. (Entendeu?)

A palavra "ateu" (31:49-32:11)

Olavo: -- Olha... mas eu não sei direito, viu, o que é ateu... Essa palavra "ateu", acho uma palavra meio vazia, porque o sujeito tá dizendo que ele não acredita em uma determinada religião, ou ele não acredita em um deus tal como esse deus foi explicado pra ele por uma determinada religião... (Entendeu?) Acho que isso aí tudo não significa nada.

Do segundo vídeo-áudio (que está disponível no YouTube neste link):

Discussões sobre religião, o pensamento epidérmico e a apreensão da realidade, principalmente no Brasil... (0:15-1:20; 2:09-3:06)

Yuri: -- É, então assim, discutir religião é uma coisa extremamente complicada...

Olavo: -- Não, dá pra discutir, mas... Toda discussão tem que ser com base no conhecimento dos fatos, nos dados da experiência. Como as pessoas não têm isso, então elas pegam palavras e imantam essas palavras com um poder mágico, tá entendendo, e discutem em torno das palavras. No Brasil, isso aí é a única coisa que as pessoas sabem fazer. Elas acham que pensar é isto. É você formar uma frase, depois você falar outras frases que confirmam a mesma frase... Quando você "espreme" a frase para saber a que fato da ordem concreta aquilo corresponde, você vê que é impossível.

Yuri: -- Na verdade é uma discussão formal só, né?

Olavo: -- Não, é verbal!... É verbal. São palavras, e as palavras provocam reações emocionais imediatas, sem passar pela representação da realidade, cê tá entendendo? Isso aí é o modo brasileiro de pensar, se é que isto é pensar... Isto pra mim não é pensar, é somente falar. (...) Como no Brasil todo mundo é obrigado a tomar posição já na adolescência, então o sujeito já tem uma série de opiniões que são feitas, construídas, exclusivamente em torno de reações emocionais da palavra. É claro que isto pode acontecer em todo lugar, mas, como no Brasil, não tem. No Brasil só existe isso. Toda discussão pública no Brasil é discussão em torno de palavras imantadas, cê tá entendendo?, e valores emocionais. E só isto. Quer dizer: é discussão de maluco. A coisa tá fora da realidade sempre! Porque, para você ter alguma apreensão da realidade, você precisa justamente, vamos dizer, se desencantar desses aglomerados mágicos de palavras e emoções, e buscar por trás da palavra quais são os fatos concretos, os dados de experiência concreta, a que se referem.

Unidade planetária e globalização (33:57-37:03)

Olavo: -- Eu acho que a unidade planetária não é um problema efetivamente. Por que? Porque nunca existiu, a humanidade "viveu" a sua "vida" inteira em blocos civilizacionais distantes, sem um saber do outro, e funcionou perfeitamente bem. (Entendeu?) Eu acho até que hoje existe um intercâmbio excessivo, cê tá entendendo?, criando problemas insolúveis, né?, a tal da... Na verdade, quando você pensa em globalização... Depois que eu mudei aqui para os Estados Unidos, é que eu... A gente vê que esse negócio de globalização é uma balela! Porque existem abismos entre as nações, abismos intransponíveis! Essa impressão de 'Ah, estamos num universo global, aldeia global' ... conversa mole pra boi dormir! Eu diariamente, mas diariamente!, topo assim com dez expressões idiomáticas inglesas que não têm tradução em português, não têm equivalentes, e que é uma nuança específica deste lugar, desse momento, e que você, com muita convivência, você conseguir pegar, mas não vai conseguir dizer em português, então tá aí um abismo, pô! Isso aí existe aos milhares. Abismo cultural, então... Bom, o Brasil é um país que tem 180 milhões de habitantes, e aqui, nos Estados Unidos, tem 300 milhões. Um não sabe nada do outro, e o outro sabe menos ainda do que acontece aqui. Isso em plena globalização! Então não existe globalização no aspecto cultural. Isso aí é uma bobagem. Globalização quer dizer que tem meia dúzia de "nêgo" aqui que faz negócio com outra meia dúzia de "nêgo" aí. Como esses "nêgo" rico acham que eles são o centro do mundo, eles acham que tá globalizado pra todo mundo. Ah, faz-nos rir... Globalizado pra eles, do ponto de vista econômico. (Cê tá entendendo?) Quer dizer, porque eles começaram a comerciar com pessoas com as quais eles não comerciavam antes eles acham que globalizou tudo? Isso é absolutamente ridículo! Agora, acontece que esses "camarada", eles sempre têm dinheiro pra pagar meia dúzia de intelectuais que escrevem as coisas do jeito que eles acham. E tiram um monte de cópias, distribui pra todo mundo, põe na televisão, põe na Internet, e o idiota acredita... E daí começam a discutir uma nova situação como se a situação existisse. (Cê tá entendendo?) Eu digo: ora, uma situação que existe, por exemplo, uma situação de globalização, ela deveria poder se traduzir em realidades de experiência que são acessíveis a pessoas concretas, e portanto a todas as pessoas que estão dentro dessa civilização supostamente globalizada. Mas eu vejo que os abismos culturais entre nações, eles continuam a existir, e -- pior -- alguns deles ficam mais fundos a cada dia que passa. Entre os Estados Unidos e o Brasil, olha, o abismo é imensurável. Imensurável! Levaria 40 anos pra atualizar o brasileiro mais ou menos do que tá acontecendo aqui, e quando terminasse de atualizar ele já taria com outros 40 anos atrasado...

A honestidade intelectual, o desconstrucionismo e a arte da "escrita vazia" (39:33-40:54)

Olavo: -- E eu acho que, para a formação dos intelectuais, está seria a disciplina número 1: você saber distinguir entre o que você sabe e o que você não sabe. Agora, depois que entrou essa moda desconstrucionista nas universidades, isto estupidificou as pessoas a tal ponto, que elas não sabem mais distinguir entre o que é saber alguma coisa e o que que é conseguir fazer uma frase a respeito. Quando ele consegue fazer uma frase, ele já persuade a si mesmo. E, quando ele diz aquele frase, as pessoas que nunca tinham conseguido fazer aquela frase parecem que descobriram o mundo: 'Ah, então é assim, agora eu descobri a verdade!'... É tudo louco, po...! Agora, eu vi eu mesmo por exemplo escrevendo sobre Economia no ... (eu tinha um ... no Jornal da Tarde ... escrevia sobre ... 30 anos atrás), escrevi um monte de coisa sobre Economia sem saber nada de Economia! Eu sabia que eu não sabia. Mas o público não sabia... Então, a hora que eu percebi como é possível fazer frases sem entender nada do negócio, eu fiquei aterrorizado! Eu falei: então eu posso enganar a mim mesmo com uma facilidade extraordinária... (Você tá entendendo?) E aí que começou a conquista da minha maturidade intelectual, que consiste em distinguir o que eu sei do que eu não sei.

domingo, dezembro 16, 2012

As "doutrinas espíritas" de Kardec

(José Edmar Arantes)

Malgrado o esforço de Kardec no primeiro parágrafo da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite" da edição definitiva de Le Livre des Esprits (doravante LE) em tentar definir doctrine spirite de forma condizente com a ideia transmitida por esta expressão na capa do livro e no próprio título da referida introdução (algo como "corpo de conhecimentos transmitido por Espíritos"), alterando "Nous dirons donc que la doctrine spirite ou le spiritisme consiste dans la croyance aux relations du monde matériel avec les esprits ou êtres du monde invisible" (LE, 1857, p. 1) para "Nous dirons donc que la doctrine spirite ou le spiritisme a pour principes les relations du monde matériel avec les Esprits ou êtres du monde invisible" (LE, 1860, item I, p. III), ou seja, mudando "consiste na crença em" para "tem por princípios as" -- mudança esta que, em minha opinião, tornou a frase ininteligível [1] --, não há como fugir do fato de que, em outros trechos da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite" (e não são poucos), doctrine spirite continuou a significar o que significava no primeiro parágrafo da versão da "Introduction" na edição de 1857, ou seja, crença espírita (crença na existência de Espíritos e de relações destes com o mundo material).

Até onde sei, Silvino Canuto Abreu (1892-1980) -- um dos maiores intelectuais espíritas que já passou por este país, talvez o maior -- foi o único a ressaltar explicitamente que doctrine, em certos pontos da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite", tem o sentido de crença. E como é bem possível que muitos não tenham tomado contato com a obra na qual este "aviso" se encontra (O Primeiro Livro dos Espíritos [2], doravante PLE), seja por falta de oportunidade, seja por desprezo mesmo, estamos a reiterá-lo aqui, e o ilustraremos com alguns trechos da referida introdução nos quais doctrine spirite tem o sentido de crença espírita, o que poderá ser melhor aferido lendo-se mais do contexto em que estão inseridos. Dito isto, vamos aos trechos...

--- "Nous avons cru devoir insister d'autant plus sur ces explications que la doctrine spirite repose naturellement sur l'existence en nous d'un être indépendant de la matière et survivant au corps." (LE, 1857, p. 4; LE, 1860, item II, p. VI)

"Pareceu-nos dever insistir um tanto demais nesta explicação porque a Crença Espírita repousa forçosamente na existência em nós de um ser independente da matéria corpórea e sobrevivente ao corpo." (PLE, 1957, p. 4)

-- "La doctrine spirite, comme toute chose nouvelle [3], a ses adeptes et ses contradicteurs. Nous allons essayer de répondre à quelques-unes des objections de ces derniers, en examinant la valeur des motifs sur lesquels ils s'appuient, sans avoir toutefois la prétention de convaincre tout le monde, car il est des gens qui croient que la lumière a été faite pour eux seuls. [...]" (LE, 1857, p. 4; LE, 1860, item III, p. VII)

"A Crença Espírita, como toda idéia nova, tem seus adeptos e contraditores. Vamos tentar responder aqui a algumas das mais comuns objeções destes últimos, examinando o valor dos motivos alegados e nos quais se apoiam, sem todavia ter a pretensão de convencer tôda a gente, mesmo porque há certas pessoas que supõem ter o Sol nascido somente para elas. [...]" (PLE, 1957, p. 4)

-- "Est-il d'ailleurs besoin d'un diplôme officiel pour avoir du bon sens, et ne compte-t-on en dehors des fauteuils académiques que des sots et des imbéciles? Qu'on veuille bien jeter les yeux sur les adeptes de la doctrine spirite, et l'on verra si l'on n'y rencontre que des ignorants, et si le nombre immense d'hommes de mérite qui l'ont embrassée permet de la reléguer au rang des croyances de bonnes femmes. [...] (LE, 1857, p. 15; LE, 1860 [4], item VII, p. XXI)

"Será porventura necessário diploma oficial para se ter bom senso, e só se contam fora das cátedras acadêmicas pacóvios, paspalhões, tolos e imbecis? Queiram os zoilos lançar o olhar justo sobre os Adeptos da Crença Espírita e hão de ver se entre eles só se acham ignorantes, e se o número imenso de homens de mérito e respeito que a abraçaram lhes permite relegá-la ao rol das crendices de gente à-tôa. [...]" (PLE, 1957, p. 15)

-- "Alors on ajoute que s'il n'y a pas supercherie, des deux côtés on peut être dupe d'une illusion. En bonne logique, la qualité des témoins est d'un certain poids; or c'est ici le cas de demander si la doctrine spirite, qui compte aujourd'hui ses adhérents par millions, ne les recrute que parmi les ignorants? [...]" (LE, 1857, p. 17; LE, 1860, item IX, p. XXV)

"Ainda os antagonistas aduzem : 'Se não há embuste dos dois lados, podeis ser vítima duma ilusão.' Em boa lógica a qualidade das testemunhas possui certo valor. Ora, aqui é o caso de perguntar se a Crença nos Espíritos, que conta hoje seus adeptos por milhões, só os tem recrutado na grande massa d'os ignorantes. [...]" (PLE, 1957, p. 17)

-- "Un fait démontré par l'observation, et confirmé par les esprits [5] eux-mêmes, c'est que les esprits inférieurs empruntent souvent des noms connus et révérés. Qui donc peut nous assurer que ceux qui disent avoir été, par exemple, Socrate, Jules César, Charlemagne, Fénelon, Napoléon, Washington, etc., aient réellement animé ces personnages? Ce doute existe parmi certains adeptes très fervents de la doctrine spirite; ils admettent l'intervention et la manifestation des esprits, mais ils se demandent quel contrôle on peut avoir de leur identité. [...]" (LE, 1857, p. 20; LE, 1860, item XII, p. XXVIII)

"Um fato, demonstrado pela observação e confirmado pelos Espíritos, eles próprios, é que os Espíritos inferiores abusam às vezes de nomes conhecidos e reverenciados. Portanto, quem pode garantir-nos que, dizendo haver sido, por exemplo, SÓCRATES, Júlio CÉSAR, CARLOS Magno, FÉNELON, BONAPARTE, WASHINGTON, etc., hajam de fato animado tais personagens? Existe dúvida até no meio de certos adeptos muito fervorosos da Crença Espírita, que admitem a intervenção e manifestação dos Espíritos, mas perguntam-se que espécie de controle se pode ter da identidade deles." (PLE, 1957, p. 20)

Pronto. Aí está mais um texto para reflexão dos espíritas kardecistas, estes curiosos seres que adoram brigar por palavras e que, por pura ignorância ou incapacidade reflexiva mesmo, não admitem o fato de que, mesmo dentro de uma mesma obra kardequiana, quando fora de restrito contexto, os seus "termos prediletos" são ambíguos.

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1- Foi muito provavelmente por esta razão que Guillon Ribeiro (FEB) -- e, em sua esteira, Herculano Pires (LAKE), que também se aproveitou em outros momentos da tradução febiana (vide, por exemplo, aqui) -- resolveu, ali, traduzir principes por "princípio", o que, além de ser uma adulteração (ainda que pequena) do que realmente consta na obra original, não me parece recobrar o sentido que Kardec intentou dar à frase. [voltar]
2- O Primeiro Livro dos Espíritos (São Paulo: Companhia Editôra Ismael, 1957), edição comemorativa da versão primeira de Le Livre des Esprits (1857) em texto bilíngue, francês-português, sendo a tradução e as notas devidas a Canuto Abreu. [voltar]
3- Apesar de parecer inconsistente historicamente tal afirmação (e de fato o é, como o item 222 da edição definitiva de O Livro dos Espíritos trata de corrigir), foi exatamente isso o que Kardec disse. [voltar]
4- Nesta edição o trecho encontra-se dentro de um parágrafo, e sem "d'ailleurs". [voltar]
5- Na edição de 1860, esprits passou a constar como Esprits (com a inicial maiúscula) em todo lugar onde aparecia neste trecho. [voltar]

domingo, dezembro 09, 2012

De "espiritismo" e "kardecismo"

Há muita discussão estéril no meio espírita. Uns bradam daqui, outros convulsionam-se dali, e assim a coisa vai "caminhando"... Pitacos linguísticos, por exemplo, não faltam. Mas raramente vê-se algo que preste neste sentido. É sempre a mesma ladainha insólita: "Só existe um espiritismo", "O termo kardecismo é impróprio para designar o sistema filosófico-religioso que emerge dos livros de Kardec", ou então -- caso mais patológico -- "Kardecismo não existe!"... Bem, fato é que tais afirmações não se sustentam. Seja historicamente e lexicograficamente (a primeira e a terceira), seja etimologicamente e lexicograficamente (a segunda). Um dia, quando estiver de bom humor, escreverei sobre isso.