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terça-feira, novembro 03, 2020

Proposta para definição de "umbanda"

Conforme dissemos na postagem anterior (aqui), a Linha Branca de Umbanda, com o tempo, passou a se denominar simplesmente Umbanda. Propomos abaixo uma definição que acreditamos enfeixar suas características nucleares.

Umbanda — Prática religiosa com o objetivo de libertar obsessões e curar moléstias espirituais, realizada nos chamados terreiros1, fundamentada na fé em um deus maior (Zâmbi), em divindades do panteão iorubano2 e em santos católicos, e caracterizada por ritualística própria (defumações, cantos ritmados, etc.), mediunismo ostensivo e manifestações de espíritos arquetipicamente classificados (caboclos, pretos-velhos, crianças, etc., além de, ocasionalmente, exus3).

1 Na umbanda deturpada (vide nota 2) os locais de culto são denominados tendas espíritas ou mesmo centros espíritas, como no kardecismo
2 Já em meados da década de 1910, foi iniciado um movimento que, sob a justificativa de "purificação dos trabalhos de magia nos terreiros", para "expurgar Umbanda do rito essencialmente africanista" (vide pág. 15 do periódico O Semanário de número 91, 2 a 9 de janeiro de 1958), acabou distorcendo-a completamente. Foi desconsiderada a existência das divindades do panteão iorubano (no mínimo cinco delas eram cultuadas: Oxalá, Iemanjá, Xangô, Oxóssi e Ogum) e utilizados seus nomes para "apelidar" ícones do catolicismo (vide, por exemplo, os livros "O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda", Leal de Souza, 1933, e "Umbanda - magia branca e Quimbanda - magia negra", Lourenço Braga, 1942), prática que já era comum em algumas macumbas (vide "O Negro Brasileiro", Arthur Ramos, 1934). Foram também abolidos os atabaques e outros instrumentos de percussão. Para piorar, foi criado o artificalismo das ditas sete linhas (vide aqui), algo completamente estranho à prática religiosa original. (Por incrível que pareça, boa parte, senão a maior, dos terreiros atuais seguem toda essa deturpação)
3 Enquanto alguns autores umbandistas, como Leal de Souza e Lourenço Braga, consideram os exus entidades com individualidade (vide obras citadas), outros, como João de Freitas, têm opinião bastante diversa, considerando que exus não seriam almas ou espíritos, mas frutos da ação do pensamento do médium sobre certos fluidos sutis (vide livro "Exu na Umbanda", 1971)

— Texto modificado em novembro de 2024

quinta-feira, setembro 24, 2020

Linha Branca de Umbanda e Linha Negra de Umbanda

(Edmar Arantes)

Muitos afirmam, como Lourenço Braga em Umbanda (magia branca) e Quimbanda (magia negra), e o próprio título da obra já o diz, que o termo "umbanda" refere-se especificamente a magia branca. Isso não parece ser verdade.

O citado autor diz o seguinte:

"Não devemos dizer 'Linha Branca de Umbanda' e nem 'Linha de Umbanda', no sentido que muita gente emprega quando se refere a Umbanda. Se dissermos 'Linha Branca de Umbanda', compreender-se-á logo que há também 'Linha Negra de Umbanda', isto é, que na Umbanda há magia negra. É um grande erro, tal afirmativa! Umbanda é Magia Branca!" (BRAGA, 1942, p. 24)

Héli Chatelain, notável linguista e estudioso do quimbundo, por outro lado, na nota 180 (p. 268) de sua obra Folk-tales of Angola (1894) diz o seguinte (grifo meu):

"U-mbanda is derived from Ki-mbanda, by prefix u-, as u-ngana is from ngana. Umbanda is: 1) The faculty, science, art, office, business (a) of healing by means of natural medicines (remedies) or supernatural medicines (charms); (b) of divining the unknown by consulting the shades of the deceased or the genii, demons, who are spirits neither humans nor divine; (c) of inducing these human and non-human spirits to influence men and nature for human weal or woe. 2) The forces at work in healing, divining, and the influence of spirits. 3) The objects (charms) which are supposed to establish and determine the connection between the spirits and the physical world." (apud RAMOS, 1934, pp. 88-89, rodapé)

Em uma tradução livre:

"U-mbanda deriva-se de Ki-mbanda pelo prefixo u-, como u-ngana vem de ngana. Umbanda é: 1) a faculdade, ciência, arte, profissão, ofício: a) de curar por meio de medicina natural (remédios) ou de medicina sobrenatural (encantamentos, feitiços); b) de adivinhar o desconhecido pela consulta às almas dos mortos ou aos gênios, demônios, que são espíritos nem humanos nem divinos; c) de induzir estes espíritos, humanos ou não, com vistas a influenciar os homens e a natureza para a cura ou o infortúnio humanos. 2) As forças agindo na cura, adivinhação e influência dos espíritos. 3) Os encantamentos e feitiços que se supõem estabelecer e determinar a ligação entre os espíritos e o mundo físico".

Ou seja, dentro do conjunto de significados de "umbanda" também se encontrava a dita magia negra.

No Brasil, os significados expostos por Héli Chatelain foram de certa forma reunidos. Arthur Ramos afirma que alguns negros e mestiços cariocas utilizavam a expressão Linha de Umbanda para designar certa prática religiosa (RAMOS, 1934, p. 89). Deduzimos, por inferência, que tal prática seria caraterizada pela presença de um "sacerdote" (o pai-de-santo ou chefe de terreiro) que teria o que foi descrito em 1 (o que já inclui a crença em 2 e 3), e numa atitude de devoção e respeito de seus pacientes/consulentes frente aos espíritos, humanos ou não, acessados por ele. Nesta direção, não é de todo desarrazoado falar-se em Linha Branca de Umbanda e em Linha Negra de Umbanda. Aquela seria a Linha de Umbanda em que o pai-de-santo teria 1c restrito para a cura, enquanto a outra seria a Linha de Umbanda sem 1a e com 1c restrito para práticas maléficas, causadoras de infortúnio.

Arthur Ramos afirma que alguns negros e mestiços cariocas utilizavam a expressão Linha de Umbanda para designar certa prática religiosa (RAMOS, 1934, p. 89). Se considerarmos, a par disso, a definição dada por Chatelain, Linha Branca de Umbanda seria a prática religiosa baseada na magia branca, enquanto Linha Negra de Umbanda seria aquela baseada na magia negra.

Nota 1: A partir da década de 1940 tais expressões foram caindo em desuso. Como a própria obra de Lourenço Braga indica, Linha Branca de Umbanda acabou substituída por apenas Umbanda, em clara restrição do significado original da palavra, de conotações mais amplas, e Linha Negra de Umbanda deu espaço à palavra Quimbanda, que acabou se estabelecendo.
Nota 2: Alguns quimbandeiros alegam que na Quimbanda também se praticam curas. Neste caso, a magia branca não seria característica distintiva da Umbanda.

BRAGA, Lourenço. Umbanda (magia branca) e quimbanda (magia negra), Livraria Jacintho, 1942
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro, Civilização Brasileira, 1934

domingo, dezembro 16, 2012

As "doutrinas espíritas" de Kardec

(José Edmar Arantes)

Malgrado o esforço de Kardec no primeiro parágrafo da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite" da edição definitiva de Le Livre des Esprits (doravante LE) em tentar definir doctrine spirite de forma condizente com a ideia transmitida por esta expressão na capa do livro e no próprio título da referida introdução (algo como "corpo de conhecimentos transmitido por Espíritos"), alterando "Nous dirons donc que la doctrine spirite ou le spiritisme consiste dans la croyance aux relations du monde matériel avec les esprits ou êtres du monde invisible" (LE, 1857, p. 1) para "Nous dirons donc que la doctrine spirite ou le spiritisme a pour principes les relations du monde matériel avec les Esprits ou êtres du monde invisible" (LE, 1860, item I, p. III), ou seja, mudando "consiste na crença em" para "tem por princípios as" -- mudança esta que, em minha opinião, tornou a frase ininteligível [1] --, não há como fugir do fato de que, em outros trechos da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite" (e não são poucos), doctrine spirite continuou a significar o que significava no primeiro parágrafo da versão da "Introduction" na edição de 1857, ou seja, crença espírita (crença na existência de Espíritos e de relações destes com o mundo material).

Até onde sei, Silvino Canuto Abreu (1892-1980) -- um dos maiores intelectuais espíritas que já passou por este país, talvez o maior -- foi o único a ressaltar explicitamente que doctrine, em certos pontos da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite", tem o sentido de crença. E como é bem possível que muitos não tenham tomado contato com a obra na qual este "aviso" se encontra (O Primeiro Livro dos Espíritos [2], doravante PLE), seja por falta de oportunidade, seja por desprezo mesmo, estamos a reiterá-lo aqui, e o ilustraremos com alguns trechos da referida introdução nos quais doctrine spirite tem o sentido de crença espírita, o que poderá ser melhor aferido lendo-se mais do contexto em que estão inseridos. Dito isto, vamos aos trechos...

--- "Nous avons cru devoir insister d'autant plus sur ces explications que la doctrine spirite repose naturellement sur l'existence en nous d'un être indépendant de la matière et survivant au corps." (LE, 1857, p. 4; LE, 1860, item II, p. VI)

"Pareceu-nos dever insistir um tanto demais nesta explicação porque a Crença Espírita repousa forçosamente na existência em nós de um ser independente da matéria corpórea e sobrevivente ao corpo." (PLE, 1957, p. 4)

-- "La doctrine spirite, comme toute chose nouvelle [3], a ses adeptes et ses contradicteurs. Nous allons essayer de répondre à quelques-unes des objections de ces derniers, en examinant la valeur des motifs sur lesquels ils s'appuient, sans avoir toutefois la prétention de convaincre tout le monde, car il est des gens qui croient que la lumière a été faite pour eux seuls. [...]" (LE, 1857, p. 4; LE, 1860, item III, p. VII)

"A Crença Espírita, como toda idéia nova, tem seus adeptos e contraditores. Vamos tentar responder aqui a algumas das mais comuns objeções destes últimos, examinando o valor dos motivos alegados e nos quais se apoiam, sem todavia ter a pretensão de convencer tôda a gente, mesmo porque há certas pessoas que supõem ter o Sol nascido somente para elas. [...]" (PLE, 1957, p. 4)

-- "Est-il d'ailleurs besoin d'un diplôme officiel pour avoir du bon sens, et ne compte-t-on en dehors des fauteuils académiques que des sots et des imbéciles? Qu'on veuille bien jeter les yeux sur les adeptes de la doctrine spirite, et l'on verra si l'on n'y rencontre que des ignorants, et si le nombre immense d'hommes de mérite qui l'ont embrassée permet de la reléguer au rang des croyances de bonnes femmes. [...] (LE, 1857, p. 15; LE, 1860 [4], item VII, p. XXI)

"Será porventura necessário diploma oficial para se ter bom senso, e só se contam fora das cátedras acadêmicas pacóvios, paspalhões, tolos e imbecis? Queiram os zoilos lançar o olhar justo sobre os Adeptos da Crença Espírita e hão de ver se entre eles só se acham ignorantes, e se o número imenso de homens de mérito e respeito que a abraçaram lhes permite relegá-la ao rol das crendices de gente à-tôa. [...]" (PLE, 1957, p. 15)

-- "Alors on ajoute que s'il n'y a pas supercherie, des deux côtés on peut être dupe d'une illusion. En bonne logique, la qualité des témoins est d'un certain poids; or c'est ici le cas de demander si la doctrine spirite, qui compte aujourd'hui ses adhérents par millions, ne les recrute que parmi les ignorants? [...]" (LE, 1857, p. 17; LE, 1860, item IX, p. XXV)

"Ainda os antagonistas aduzem : 'Se não há embuste dos dois lados, podeis ser vítima duma ilusão.' Em boa lógica a qualidade das testemunhas possui certo valor. Ora, aqui é o caso de perguntar se a Crença nos Espíritos, que conta hoje seus adeptos por milhões, só os tem recrutado na grande massa d'os ignorantes. [...]" (PLE, 1957, p. 17)

-- "Un fait démontré par l'observation, et confirmé par les esprits [5] eux-mêmes, c'est que les esprits inférieurs empruntent souvent des noms connus et révérés. Qui donc peut nous assurer que ceux qui disent avoir été, par exemple, Socrate, Jules César, Charlemagne, Fénelon, Napoléon, Washington, etc., aient réellement animé ces personnages? Ce doute existe parmi certains adeptes très fervents de la doctrine spirite; ils admettent l'intervention et la manifestation des esprits, mais ils se demandent quel contrôle on peut avoir de leur identité. [...]" (LE, 1857, p. 20; LE, 1860, item XII, p. XXVIII)

"Um fato, demonstrado pela observação e confirmado pelos Espíritos, eles próprios, é que os Espíritos inferiores abusam às vezes de nomes conhecidos e reverenciados. Portanto, quem pode garantir-nos que, dizendo haver sido, por exemplo, SÓCRATES, Júlio CÉSAR, CARLOS Magno, FÉNELON, BONAPARTE, WASHINGTON, etc., hajam de fato animado tais personagens? Existe dúvida até no meio de certos adeptos muito fervorosos da Crença Espírita, que admitem a intervenção e manifestação dos Espíritos, mas perguntam-se que espécie de controle se pode ter da identidade deles." (PLE, 1957, p. 20)

Pronto. Aí está mais um texto para reflexão dos espíritas kardecistas, estes curiosos seres que adoram brigar por palavras e que, por pura ignorância ou incapacidade reflexiva mesmo, não admitem o fato de que, mesmo dentro de uma mesma obra kardequiana, quando fora de restrito contexto, os seus "termos prediletos" são ambíguos.

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1- Foi muito provavelmente por esta razão que Guillon Ribeiro (FEB) -- e, em sua esteira, Herculano Pires (LAKE), que também se aproveitou em outros momentos da tradução febiana (vide, por exemplo, aqui) -- resolveu, ali, traduzir principes por "princípio", o que, além de ser uma adulteração (ainda que pequena) do que realmente consta na obra original, não me parece recobrar o sentido que Kardec intentou dar à frase. [voltar]
2- O Primeiro Livro dos Espíritos (São Paulo: Companhia Editôra Ismael, 1957), edição comemorativa da versão primeira de Le Livre des Esprits (1857) em texto bilíngue, francês-português, sendo a tradução e as notas devidas a Canuto Abreu. [voltar]
3- Apesar de parecer inconsistente historicamente tal afirmação (e de fato o é, como o item 222 da edição definitiva de O Livro dos Espíritos trata de corrigir), foi exatamente isso o que Kardec disse. [voltar]
4- Nesta edição o trecho encontra-se dentro de um parágrafo, e sem "d'ailleurs". [voltar]
5- Na edição de 1860, esprits passou a constar como Esprits (com a inicial maiúscula) em todo lugar onde aparecia neste trecho. [voltar]

domingo, dezembro 09, 2012

De "espiritismo" e "kardecismo"

Há muita discussão estéril no meio espírita. Uns bradam daqui, outros convulsionam-se dali, e assim a coisa vai "caminhando"... Pitacos linguísticos, por exemplo, não faltam. Mas raramente vê-se algo que preste neste sentido. É sempre a mesma ladainha insólita: "Só existe um espiritismo", "O termo kardecismo é impróprio para designar o sistema filosófico-religioso que emerge dos livros de Kardec", ou então -- caso mais patológico -- "Kardecismo não existe!"... Bem, fato é que tais afirmações não se sustentam. Seja historicamente e lexicograficamente (a primeira e a terceira), seja etimologicamente e lexicograficamente (a segunda). Um dia, quando estiver de bom humor, escreverei sobre isso.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

Os espiritismo de Kardec

José Edmar Arantes

No início da 1a. edição de Le Livre des Esprits (O Livro dos Espíritos), datada de 1857, na seção "Introduction à l'étude de la doctrine spirite" (Introdução ao estudo da doutrina espírita), Allan Kardec escreve o seguinte (negrito meu):

"(...) le spiritualisme est le opposé du matérialisme; quiconque croit avoir en soi autre chose que la matière est spiritualiste; mais il ne s'ensuit pas qu'il croie à l'existence des esprits ou à leurs communications avec le monde visible. Au lieu des mots spirituelspiritualismenous employons, pour désigner cette dernière croyance, ceux de spirite et de spiritisme, dont la forme rappelle l'origine et le sens radical, et qui par cela même ont l'avantage d'être parfaitement intelligibles. Nous dirons donc que la doctrine spirite ou le spiritisme consiste dans la croyance aux relations du monde matériel avec les esprits ou êtres du monde invisible".

Em uma tradução livre:

"(...) o espiritualismo é o oposto do materialismo; quem quer que creia haver em si outra coisa além da matéria é espiritualista; mas daí não resulta que creia na existência de espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em lugar das palavras espiritualespiritualismonós empregamos, para designar esta última crença, os vocábulos espírita e espiritismo, cuja forma recorda a origem e o sentido radical, e por isso têm a vantagem de serem perfeitamente inteligíveis. Nós diremos portanto que a doutrina espírita ou espiritismo consiste na crença em relações do mundo material com os espíritos ou seres do mundo invisível".

Ou seja, espiritismo seria simplesmente a crença na existência de espíritos e em suas comunicações com o mundo visível.

Pois bem. Em 1858 Kardec publica seu livro Instructions Pratiques sur les Manifestations Espirites (Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas), que serviu de base para Le Livre des Mediums (O Livro dos Médiuns), publicado originalmente em 1861. No Brasil, o Instructions foi traduzido por Cairbar Schutel (Casa Editora O Clarim) e por Julio Abreu Filho (Ed. Pensamento). Em seu "Vocabulário Espírita" consta:

"Espiritismo: doutrina fundada sobre a crença na existência dos Espíritos e em sua comunicação com os homens".

Ou seja, o que antes foi definido apenas como uma crença passou a ser considerado uma doutrina fundada sobre a tal crença...

Em 1859 foi publicado, de Kardec, Quest-ce que le Spiritisme (O que é o Espiritismo) [1]. Neste livro, o codificador diz o seguinte à pág. 2 do "Préambule" :

"Pour répondre, dès à présent, à la question formulée dans notre titre , nous dirons que : le Spiritisme est la doctrine fondée sur l'existence des Esprits , ou êtres incorporels du monde invisible, et leurs rapports avec le monde corporel. On peut encore dire que : le Spiritisme est la science de tout ce qui se rattache à la connaissance des Esprits ou du monde invisible."

Em tradução livre:

"Para responder, agora, à questão colocada no nosso título, diremos que: o espiritismo é a doutrina baseada na existência de espíritos, ou seres incorpóreos do mundo invisível, e suas relações com o mundo corporal. Pode-se também dizer que: o espiritismo é a ciência de tudo o que se relaciona com o conhecimento dos espíritos ou do mundo invisível."

Ou seja, em linhas gerais, Kardec reiterou o que dissera em sua obra anterior.

Em 1860 foi a vez do surgimento da 2a. edição de Le Livre des Esprits, a "edição definitiva", utilizada como base para as principais traduções do livro no Brasil. Na versão de Guillon Ribeiro (Federação Espírita Brasileira -- FEB), consta o seguinte na parte I da "Introdução ao estudo da doutrina espírita" (negritos meus):

"(...) o espiritualismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível. Em vez das palavras espiritualespiritualismoempregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria."

Ou seja, neste trecho Kardec manteve o conceito que externara na 1a. edição de Le Livre des Esprits a respeito da palavra.

Porém, logo a seguir, tentando implementar ali a definição utilizada no Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas (1858), ele acaba por se contradizer (negrito meu):

"(...) Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo [nota: no original francês aparece spiritisme, ou seja, em itálico e sem a inicial maiúscula] tem por princípio [nota: no original francês consta pour principes] as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível."

Ou seja, "espiritismo" deixou de ser a crença nas comunicações dos Espíritos com o mundo visível para ser algo que tem as nossas relações com os Espíritos apenas como pressuposto inicial...

É um vai e vem que não acaba mais!

Aqui, neste blog, tomaremos por base a definição de "espiritismo" dada por Kardec na 1a. edição de Le Livre des Esprits (1857), que se apresenta livre de quaisquer inconsistências, além de ser extremamente simples e abrangente:

ESPIRITISMO - Crença na existência de Espíritos e de relações destes com o mundo material.

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[1] Na página de dados editoriais da 49a. edição desta obra pela FEB (março de 2004), e muito provavelmente também na de todas as edições do livro publicadas a partir do início da década de 70 (quando tal página foi instituída nas publicações FEB), somos informados de que a edição em foco trata-se de uma tradução da versão original francesa da obra, de 1859. Pura mentira! A tradução ali apresentada é da edição definitiva da obra, a sexta, de 1865, "refundida e consideravelmente aumentada", onde Kardec mete os pés pelas mãos e acaba criando uma teia de contradições inaceitável em sua tentativa de definir "Espiritismo". Leiamos parte do "Preâmbulo" da obra em sua citada edição pela FEB (49a., março de 2004):

"Para responder, desde já e sumariamente, à pergunta formulada no título deste opúsculo, diremos que: O ESPIRITISMO É, AO MESMO TEMPO, UMA CIÊNCIA DE OBSERVAÇÃO E UMA DOUTRINA FILOSÓFICA. COMO CIÊNCIA PRÁTICA ELE CONSISTE NAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE NÓS E OS ESPÍRITOS; COMO FILOSOFIA, COMPREENDE TODAS AS CONSEQÜÊNCIAS MORAIS QUE DIMANAM DESSAS MESMAS RELAÇÕES. Podemos defini-lo assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal".

Dois pontos nos saltam aos olhos após a leitura deste trecho:

1- Ao resumir sua definição, dizendo que o Espiritismo seria "uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal", Kardec contradiz o que havia acabado de dizer, ou seja, que o Espiritismo seria uma ciência de observação e uma doutrina filosófica, pois que "natureza, origem e destino" dos Espíritos é um assunto que não é subsidiado nem pelo estudo observacional das manifestações mediúnicas, nem pelas consequências morais concernentes ao Espiritismo entendido como doutrina filosófica. Foram apresentadas, assim, duas definições completamente distintas de "Espiritismo", o que é um problema;
2- Não bastasse isso, pode-se facilmente verificar que ambas as definições contrastam tanto com a fornecida por Kardec no início de Le Livre des Esprits, como com aquela do "Vocabulário Espírita" que aparece em Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas (e também em O Livro dos Médiuns), que seria reproduzida quase literalmente na 1a. edição de Quest-ce que le Spiritisme.

Resumindo: na versão definitiva desta obra, Kardec foi infeliz em sua tentativa de definição de "Espiritismo". Curiosamente, tem gente que ainda briga (tentando se justificar justamente com o trecho contraditório que reproduzimos acima!) dizendo que "isto é Espiritismo", "aquilo não é Espiritismo", etc. Convenhamos!...
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# A versão acima é de 01/06/2013.