domingo, dezembro 16, 2012

As "doutrinas espíritas" de Kardec

(José Edmar Arantes)

Malgrado o esforço de Kardec no primeiro parágrafo da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite" da edição definitiva de Le Livre des Esprits (doravante LE) em tentar definir doctrine spirite de forma condizente com a ideia transmitida por esta expressão na capa do livro e no próprio título da referida introdução (algo como "corpo de conhecimentos transmitido por Espíritos"), alterando "Nous dirons donc que la doctrine spirite ou le spiritisme consiste dans la croyance aux relations du monde matériel avec les esprits ou êtres du monde invisible" (LE, 1857, p. 1) para "Nous dirons donc que la doctrine spirite ou le spiritisme a pour principes les relations du monde matériel avec les Esprits ou êtres du monde invisible" (LE, 1860, item I, p. III), ou seja, mudando "consiste na crença em" para "tem por princípios as" -- mudança esta que, em minha opinião, tornou a frase ininteligível [1] --, não há como fugir do fato de que, em outros trechos da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite" (e não são poucos), doctrine spirite continuou a significar o que significava no primeiro parágrafo da versão da "Introduction" na edição de 1857, ou seja, crença espírita (crença na existência de Espíritos e de relações destes com o mundo material).

Até onde sei, Silvino Canuto Abreu (1892-1980) -- um dos maiores intelectuais espíritas que já passou por este país, talvez o maior -- foi o único a ressaltar explicitamente que doctrine, em certos pontos da "Introduction a l'Etude de la Doctrine Spirite", tem o sentido de crença. E como é bem possível que muitos não tenham tomado contato com a obra na qual este "aviso" se encontra (O Primeiro Livro dos Espíritos [2], doravante PLE), seja por falta de oportunidade, seja por desprezo mesmo, estamos a reiterá-lo aqui, e o ilustraremos com alguns trechos da referida introdução nos quais doctrine spirite tem o sentido de crença espírita, o que poderá ser melhor aferido lendo-se mais do contexto em que estão inseridos. Dito isto, vamos aos trechos...

--- "Nous avons cru devoir insister d'autant plus sur ces explications que la doctrine spirite repose naturellement sur l'existence en nous d'un être indépendant de la matière et survivant au corps." (LE, 1857, p. 4; LE, 1860, item II, p. VI)

"Pareceu-nos dever insistir um tanto demais nesta explicação porque a Crença Espírita repousa forçosamente na existência em nós de um ser independente da matéria corpórea e sobrevivente ao corpo." (PLE, 1957, p. 4)

-- "La doctrine spirite, comme toute chose nouvelle [3], a ses adeptes et ses contradicteurs. Nous allons essayer de répondre à quelques-unes des objections de ces derniers, en examinant la valeur des motifs sur lesquels ils s'appuient, sans avoir toutefois la prétention de convaincre tout le monde, car il est des gens qui croient que la lumière a été faite pour eux seuls. [...]" (LE, 1857, p. 4; LE, 1860, item III, p. VII)

"A Crença Espírita, como toda idéia nova, tem seus adeptos e contraditores. Vamos tentar responder aqui a algumas das mais comuns objeções destes últimos, examinando o valor dos motivos alegados e nos quais se apoiam, sem todavia ter a pretensão de convencer tôda a gente, mesmo porque há certas pessoas que supõem ter o Sol nascido somente para elas. [...]" (PLE, 1957, p. 4)

-- "Est-il d'ailleurs besoin d'un diplôme officiel pour avoir du bon sens, et ne compte-t-on en dehors des fauteuils académiques que des sots et des imbéciles? Qu'on veuille bien jeter les yeux sur les adeptes de la doctrine spirite, et l'on verra si l'on n'y rencontre que des ignorants, et si le nombre immense d'hommes de mérite qui l'ont embrassée permet de la reléguer au rang des croyances de bonnes femmes. [...] (LE, 1857, p. 15; LE, 1860 [4], item VII, p. XXI)

"Será porventura necessário diploma oficial para se ter bom senso, e só se contam fora das cátedras acadêmicas pacóvios, paspalhões, tolos e imbecis? Queiram os zoilos lançar o olhar justo sobre os Adeptos da Crença Espírita e hão de ver se entre eles só se acham ignorantes, e se o número imenso de homens de mérito e respeito que a abraçaram lhes permite relegá-la ao rol das crendices de gente à-tôa. [...]" (PLE, 1957, p. 15)

-- "Alors on ajoute que s'il n'y a pas supercherie, des deux côtés on peut être dupe d'une illusion. En bonne logique, la qualité des témoins est d'un certain poids; or c'est ici le cas de demander si la doctrine spirite, qui compte aujourd'hui ses adhérents par millions, ne les recrute que parmi les ignorants? [...]" (LE, 1857, p. 17; LE, 1860, item IX, p. XXV)

"Ainda os antagonistas aduzem : 'Se não há embuste dos dois lados, podeis ser vítima duma ilusão.' Em boa lógica a qualidade das testemunhas possui certo valor. Ora, aqui é o caso de perguntar se a Crença nos Espíritos, que conta hoje seus adeptos por milhões, só os tem recrutado na grande massa d'os ignorantes. [...]" (PLE, 1957, p. 17)

-- "Un fait démontré par l'observation, et confirmé par les esprits [5] eux-mêmes, c'est que les esprits inférieurs empruntent souvent des noms connus et révérés. Qui donc peut nous assurer que ceux qui disent avoir été, par exemple, Socrate, Jules César, Charlemagne, Fénelon, Napoléon, Washington, etc., aient réellement animé ces personnages? Ce doute existe parmi certains adeptes très fervents de la doctrine spirite; ils admettent l'intervention et la manifestation des esprits, mais ils se demandent quel contrôle on peut avoir de leur identité. [...]" (LE, 1857, p. 20; LE, 1860, item XII, p. XXVIII)

"Um fato, demonstrado pela observação e confirmado pelos Espíritos, eles próprios, é que os Espíritos inferiores abusam às vezes de nomes conhecidos e reverenciados. Portanto, quem pode garantir-nos que, dizendo haver sido, por exemplo, SÓCRATES, Júlio CÉSAR, CARLOS Magno, FÉNELON, BONAPARTE, WASHINGTON, etc., hajam de fato animado tais personagens? Existe dúvida até no meio de certos adeptos muito fervorosos da Crença Espírita, que admitem a intervenção e manifestação dos Espíritos, mas perguntam-se que espécie de controle se pode ter da identidade deles." (PLE, 1957, p. 20)

Pronto. Aí está mais um texto para reflexão dos espíritas kardecistas, estes curiosos seres que adoram brigar por palavras e que, por pura ignorância ou incapacidade reflexiva mesmo, não admitem o fato de que, mesmo dentro de uma mesma obra kardequiana, quando fora de restrito contexto, os seus "termos prediletos" são ambíguos.

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1- Foi muito provavelmente por esta razão que Guillon Ribeiro (FEB) -- e, em sua esteira, Herculano Pires (LAKE), que também se aproveitou em outros momentos da tradução febiana (vide, por exemplo, aqui) -- resolveu, ali, traduzir principes por "princípio", o que, além de ser uma adulteração (ainda que pequena) do que realmente consta na obra original, não me parece recobrar o sentido que Kardec intentou dar à frase. [voltar]
2- O Primeiro Livro dos Espíritos (São Paulo: Companhia Editôra Ismael, 1957), edição comemorativa da versão primeira de Le Livre des Esprits (1857) em texto bilíngue, francês-português, sendo a tradução e as notas devidas a Canuto Abreu. [voltar]
3- Apesar de parecer inconsistente historicamente tal afirmação (e de fato o é, como o item 222 da edição definitiva de O Livro dos Espíritos trata de corrigir), foi exatamente isso o que Kardec disse. [voltar]
4- Nesta edição o trecho encontra-se dentro de um parágrafo, e sem "d'ailleurs". [voltar]
5- Na edição de 1860, esprits passou a constar como Esprits (com a inicial maiúscula) em todo lugar onde aparecia neste trecho. [voltar]

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